A situação difícil dos produtores de leite é culpa da indústria | Agricultor 2000


O Presidente da Associação Agrícola de São Miguel aborda a problemática existente na fileira do leite apresentando as possíveis soluções que permitam melhorar o rendimento dos lavradores.

A nova Política Agrícola Comum 2021-2027 é também uma preocupação para a Agricultura Açoriana. Aproveita e faz igualmente um balanço ao recente Conselho Regional da Agricultura, Desenvolvimento Rural e Florestas que decorreu na ilha Graciosa


- A fileira do leite está num período de reflexão. Qual será a estratégia adotada?

Jorge Rita - Infelizmente chegámos a esta situação em que o baixo preço de leite pago pelas indústrias, com a sua incapacidade de produzir produtos de valor acrescentado e procura de novos mercados, levou a que tenhamos de procurar alternativas que permitam melhorar o rendimento dos lavradores. Não podemos continuar com a atual situação, onde os rendimentos são cada vez menores, por isso, temos de trabalhar soluções capazes de contrariar este problema. Têm de ser apresentadas propostas aos lavradores, que serão sempre facultativas, capazes de se adaptar às necessidades, que podem passar pela redução de vacas e da produção de leite, pela possibilidade de se criar uma nova reforma antecipada, pela tentativa de promover a venda de vitelas ou novilhas no exterior, pelo aumento da comparticipação do apoio à inseminação dos cruzados, pela reconversão dalgumas explorações do leite para a carne, e pela redução da carga fiscal e da segurança social.

Estas são algumas medidas que podem ser implementadas, embora estejamos em conversações com o governo regional, para que possam sair soluções concretas, já que algumas poderão ser aplicadas no imediato, enquanto que outras terão impacto a médio e mesmo a longo prazo. 

Igualmente deve ser promovido um encontro entre ministro da agricultura, secretário regional, produção, indústrias e distribuição a nível nacional, onde possam ser estabelecidas regras para a fileira que sejam capazes de parar com delapidação constante dum setor que tem grande importância na economia regional.

- Uma das medidas que falou é a redução de vacas na exploração que leva à diminuição de produção de leite. Como funcionará?

J. R. - Esta é uma das propostas que estamos a discutir e que vamos continuar a defender. Já a defendemos, quando houve a necessidade de importação de alimentos devido à seca. Entendemos que podia ser importante até pelo discurso das indústrias.

Que fique claro que não é vontade dos produtores reduzir a produção do leite. Foi uma imposição da indústria. Que isso fique bem claro. Nenhum produtor tem vontade de reduzir efectivos e reduzir a produção de leite a não ser alguns que têm esta necessidade extrema pela escassez de alimentos que têm. Mas, de um modo geral, os produtores só querem reduzir o efetivo quando deixam de ser rentáveis na produção de leite, embora a carne vá para consumo.

O problema que se tem colocado nos últimos três anos é, consecutivamente, as indústrias sempre com o discurso de que têm necessidade de escoar leite a preços mais baixos porque têm excedentes. Não percebemos que haja excedentes, sabendo até que a produção de leite do continente baixou 4%. Havia o argumento da Região de que tínhamos de preencher as prateleiras das superfícies comerciais. Afinal, as prateleiras, estiveram com menos 4% de leite continental e não foi a Região que as preencheu com os seus produtos lácteos.

- Foi a indústria que criou condições para a necessidade eventual de redução do efetivo bovino?

J. R. - Sem dúvida. Só se reduz produção com menos vacas ou alimentando-as de forma diferente. Os lavradores têm sempre muita dificuldade de alimentar as vacas de forma diferente. Mas, mesmo assim, alguns até já o fazem. Foram, durante muito tempo, obrigados a reduzir a sua produção e tiveram que fazer alterações de maneio, prejudicando a própria genética e o potencial que têm. Podiam produzir muito mais porque têm este potencial. E acabaram por produzir muito menos por imposição de algumas indústrias que todos sabemos que penalizam quem produz a mais. É o caso da Unicol, na Terceira; e da Bel, em São Miguel e, durante um ano, também já teve a parceria da Insulac.

É a indústria que nos está a empurrar para esta situação de redução da produção do leite. Esta não é a vontade dos produtores, muito menos das associações. E muito menos do presidente da Associação Agrícola de São Miguel e da Cooperativa União Agrícola que também vende genética, rações, adubos, máquinas, que elabora projetos e promove a excelência das nossas vacas, pela qualidade da sua extraordinária genética; e também promove as próprias produções de produtos lácteos, quer a nível de restauração, quer no exterior.

Não é por nós que toda esta situação foi criada. Foi criada pela atitude das indústrias. Elas pressionaram-nos a encontrar uma solução já que não a conseguem encontrar.

O que quero que fique claro é que os lavradores, pela redução na produção de leite e do efetivo, não vão perder rendimento porque têm de lhes ser garantidos todos os apoios. E havendo menos animais, e menos leite, há menos rateio nos prémios que existem no Posei. E devem ser assegurados todos os prémios, de forma integral, a todos aqueles que abateram os seus animais ou que reduzirem a sua produção de leite. Mas volto a frisar que esta será uma redução facultativa.

Se a indústria, apesar deste esforço, entender que não deve aumentar o preço do leite, esta estratégica não é única. Existem outras. Entendemos que, neste momento, existem algumas explorações agrícolas que podem ser reconvertidas para carne. E estamos a falar de São Miguel, Terceira e Graciosa.

Há outras medidas como o incremento da inseminação artificial ao nível de raças da carne para aumentar, substancialmente, a produção de carne nos Açores; o incremento da transferência de algumas explorações de leite para carne, isto sempre como opção. Não há nenhuma medida que obrigue as pessoas a fazer o que quer que seja.

- Investiu-se muito na indústria, em algumas situações, em linhas de produção de queijo flamengo. E, agora, com menos leite, vai baixar a rentabilidade destas linhas de produção da indústria…

J. R. - As nossas indústrias foram projectadas e dimensionadas para aquilo que já não havia de ser. Quando se começou a projectar algumas indústrias pelas ilhas, para fazerem queijo de barra, já era um dos produtos que menos se valorizava. E, desde que estou no movimento associativo, - e já lá vão uns anos - uma coisa que me foi dita e que me comecei a aperceber, é que os produtos de menor valor acrescentado são leite em pó e leite UHT e as nossas indústrias foram projectadas para fazer leite UHT, leite em pó e queijo barra.

Quais foram os produtos que apareceram nestas indústrias de maior valor acrescentado e o que é que eles representam nas suas indústrias? Segundo disse o representante da ANIL, só pouco mais de 20% dos seus produtos é que, tem valor acrescentado. O resto é tudo produtos de menos valor acrescentado.

E agora pergunto: Então de que vale a imagem de marca que os Açores têm? Por onde anda o Terra Nostra, que é uma marca e uma imagem muito forte? Os nossos queijos de São Jorge... O que é que tudo isso vale, afinal? Quem é que está a dar cabo de um património extraordinário que os Açores têm nos lacticínios e derivados que não estão a ser valorizados? Não são os produtores. Até nos obrigam a produzir da forma que eles entendem. As próprias indústrias até fiscalizam como é que devemos produzir. Não nos pagam mais por isso. Andamos a produzir aquilo que eles querem e, depois, na prática, os produtos não são valorizados.

O leite regional não pode ser comparado com o leite a nível nacional. O nosso maneio alimentar, as nossas condições arquipelágicas, o nosso modo de produção, o bem estar animal, levam a que o produto final não seja igual ao do continente. Por isso é que os Açores, hoje, têm uma grande notoriedade nos seus produtos precisamente por esta razão. Falta é alocar preço a estas nossas produções que não existe, - o que é uma coisa que, a mim, constrange-me. E isso compete às indústrias e, obviamente, também compete ao governo. O governo não pode ficar indiferente a uma situação destas. O governo tem investido em muitas indústrias. Tem tentado puxar as indústrias na promoção dos seus produtos, mas tem a obrigação de perceber que o parente pobre da fileira do leite continua a ser a produção. Se continua a ser a produção, todos os investimentos que o Governo venha a fazer nestas indústrias, nos próximos anos, têm que ser repensados.

- Não se devia apostar mais nos mercados?

J. R. - Esta é que é a grande questão. A indústria continua acomodada aos mesmos mercados, porque quando vamos ao historial das exportações, os destinos são sempre os mesmos, mas a procura de novos mercados não compete às associações, mas sim às indústrias. E isso continua a faltar.

O que compete às associações é fazer com que os seus lavradores façam um produto com verdadeira qualidade. E a missão das indústrias é transformar esta qualidade em produto de valor acrescentado, que é o que não acontece, salvo pequenas excepções. E estamos a ver uma Prolacto (com quem tivemos uma reunião recentemente) que, a intenção deles é criar produtos de valor acrescentado.

Não podemos estar assentes apenas no mercado nacional. Enviamos para o mercado nacional mais de 80% da nossa produção, tradicionalmente, ao longo destes anos. Onde estão os outros mercados? Nós temos uma SDEA a tentar puxar a Marca Açores para tudo quanto é sítio, com tantos produtos Marca Açores. Mas, onde é que estão os queijos? Onde é que estão os lácteos nestes mercados?

Sabemos que os mercados são difíceis. Depois, é o posicionamento dos nossos produtos lácteos. Nós entramos nos mercados sempre a nivelar por baixo. E quando é por baixo e mais barato, as pessoas associam estes produtos a fraca qualidade.

E temos uma situação que, para nós, ainda e muito mais ridícula. Nos Açores, alguém aparece com o litro de leite UHT a 50 cêntimos no mercado regional, a outra indústria aparece com 49 cêntimos e assim sucessivamente, delapidando o preço. Isto faz algum sentido? E algum consumidor vai consumir mais um litro de leite porque o leite está mais barato? Ninguém consome.

- Foi aprovado pela União Europeia um projeto apresentado pela Associação Agrícola de São Miguel no âmbito do CALL, para promover produtos lácteos dos Açores no mercado canadiano. Esse pode ser um caminho?

J. R. - Esperamos que sim, e as indústrias têm de aproveitar esta oportunidade, já que a candidatura foi apresentada pela Associação Agrícola, porque o CALL não o podia fazer, mas a nossa estratégia está coordenada. O que achamos relevante desenvolver são eventos em Toronto e Montreal. É importante mostrar o nosso modo de produção e os nossos produtos, mas o principal é garantir a vinda de agentes económicos e de profissionais das revistas de especialidade para potenciar os nossos produtos no Canadá.  O povo canadiano precisa conhecer a qualidade dos nossos produtos e a forma como produzimos.

Temos a obrigação de trabalhar todos, em conjunto, para garantir a valorização dos nossos produtos. O nosso sucesso nunca vai passar por vender produtos baratos nos mercados internacionais. Se tivermos esta filosofia vamos afundar, completamente, a Região. Precisamos de subir patamares na exportação para valorizar os nossos produtos.

Entrar nos mercados com produtos de gama baixa é um suicídio.                                                

- A Política Agrícola Comum 2021-2027 está em discussão. Quais são os desafios para os Açores nesta vertente?

J. R. - Os desafios são enormes e espero que todos estejam preocupados com essa situação, conforme está a Federação Agrícola, porque existem eleições europeias e o orçamento poderá não ser aprovado.

Aproveitava para deixar um apelo ao voto nas próximas eleições europeias. Não podemos apresentar estes valores de abstenção. As pessoas precisam perceber que mais de 50 por cento do investimento na Região é efetuado com verbas da União Europeia.

A Região precisa de garantir eurodeputados que sejam os mais bem preparados para o desempenho das suas funções. A primeira proposta apresentada pela União Europeia para a agricultura não agradou a ninguém. Por isso, a Região precisa realizar um trabalho com a União Europeia e com o Governo da República.

Devemos garantir que as ajudas discriminadas positivamente devem ser provenientes do Posei, para não criar um conflito com os agricultores do continente e que no âmbito do desenvolvimento rural, não haja redução de verbas como foi anunciado, que a comparticipação nacional não passe de 15 para 30% nos projetos de investimento e que a região tenha um plano estratégico próprio.

- Existe sensibilidade política para defender esse argumento?

J. R. - Conheço os discursos internos do presidente do Governo e o secretário da Agricultura, que estão corretos, mas precisam ser transmitidos na União Europeia para afirmação das nossas pretensões no Conselho e na Comissão.

Para validar esse discurso é preciso os pareceres positivos das associações de agricultores. Isso ficou demonstrado durante a visita do Comissário Europeu da Agricultura aos Açores.

É necessária uma boa articulação para apresentarmos os nossos argumentos sobre a importância da agricultura para os Açores.

Na Europa, todas as pessoas sabem como apresento os argumentos em defesa dos Açores na União Europeia e que a Federação Agrícola foi importantíssima para garantir a vinda do Comissário Europeu da Agricultura aos Açores.

Considero ser de elementar justiça uma atenção especial para a agricultura nos Açores, pelo facto, de ser uma região ultraperiférica.

A presença de um representante da Federação Agrícola em Bruxelas também será mais um contributo para a defesa dos interesses dos agricultores Açorianos.

Existe a forte probabilidade do próximo orçamento da PAC não ser aprovado antes das eleições europeias.

- Finalmente como decorreu o Conselho Regional da Agricultura, Desenvolvimento Rural e Florestas que teve lugar na ilha Graciosa?

J. R. - Foi um Conselho Regional da Agricultura, Desenvolvimento Rural e Florestas onde se debateram as principais preocupações da Agricultura Açoriana, e que teve a presença do Sr. Presidente do Governo Regional que defendeu que no caso do leite a produção, indústria e distribuição estão condenadas a entenderem-se, mas é preciso que o Governo não se alheie desta situação e  tem de ser proativo na resolução dos problemas da fileira, tal como aconteceu em França, onde o governo conseguiu implementar um preço do leite mínimo aos produtores.

Já lancei aliás, um desafio para que se sente à mesma mesa o ministro da agricultura, secretário regional da agricultura, as maiores indústrias nacionais e regionais, conjuntamente com a grande distribuição, para analisar toda a fileira duma forma séria e responsável.

Além do setor do leite, foram ainda analisados a fileira da carne, o setor hortofrutícola, a agricultura biológica, os fundos comunitários (Posei e Prorural+), as infraestruturas agrícolas, a desratização, a PAC pós 2020, a segurança social, a fiscalidade existente, os transportes marítimos, o gasóleo agrícola ou o roteiro da neutralidade carbónica.

Foram temas, que mereceram dos conselheiros a maior atenção e da nossa parte foram apontadas as grandes dificuldades que existem, nomeadamente, a falta de pagamentos atempados dos apoios regionais aos agricultores, a situação preocupante dos projetos de investimento ou elevada fiscalidade e segurança social que os agricultores têm e que são um claro impedimento ao desenvolvimento da agricultura na região.

Mas para além de discutir e analisarmos a situação e o diagnóstico do setor, precisamos dum governo ativo e que seja capaz de adotar as medidas necessárias duma forma expedita e que chegue a todos os agricultores o mais rapidamente possível.

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