A indústria de lacticínios não acompanha as novas exigências dos consumidores e dos mercados | Agricultor 2000


Jorge Rita, Presidente da Federação Agrícola dos Açores aborda as mais recentes temáticas da lavoura açoriana, em jeito de balanço, fazendo um ponto da situação do setor agrícola e leiteiro. Em destaque está a sua preocupação com a política de endividamento zero, implementada pelo Governo Regional, a aplicação da taxa do IVA zero nos bens alimentares essenciais, a transição do setor do leite para a carne, o parcelário, os custos com os transportes e as dificuldades dos jovens agricultores, nos dias de hoje.

- Quanto à política de endividamento zero implementada pelo Governo Regional no Orçamento de 2023, o que perspetiva, urge o Governo atuar nesse sentido?

Jorge Rita - É uma decisão que compreendo e até poderia concordar, mas na minha ótica será um equívoco na atual situação de crise económica que estamos a viver, pois esta situação exige um maior investimento no dia a dia das pessoas, e parece que há uma obsessão pelo endividamento zero e isso é incomportável nos dias de hoje, com a necessidade que o Governo tem de investir e de intervir no quotidiano das pessoas. Acredito que este fator irá influenciar as candidaturas a fundos comunitários europeus e pode-se criar um problema mais grave, que é a disponibilidade das verbas regionais a transferir para o IFAP (Instituto de Financiamento da Agricultura e Pescas) ficarem aquém do necessário, e assim, comprometer o aproveitamento das ajudas comunitárias para o investimento, e o mesmo se refere ao aproveitamento do PRR (Plano de Recuperação e Resiliência). Antevejo um ano de dificuldades se o endividamento zero for para cumprir à risca e sem orçamento retificativo.

- Relativamente à medida anunciada de reduzir o IVA para 0% no cabaz de bens alimentares essenciais, acha que é uma opção assertiva?

J. R. - Quanto a esta medida do Governo, creio que anular o IVA pode ter algum efeito positivo, mas nada garante certezas absolutas, no que diz respeito à regulação dos preços, esta pode ser uma medida útil se compensar devidamente os produtores, porém no meu entender, não vai ter os resultados práticos, e faria mais sentido criar mais ajudas a montante na produção e simultaneamente mais apoios ao consumidor final, principalmente para todos aqueles que têm rendimentos mais baixos, é preciso reconhecer que não são os agricultores a ficar com a fatia de leão, mas sim a industria e a distribuição.

- No setor leiteiro, advinham-se tempos difíceis.

J. R. - Sem dúvida. Ainda não tínhamos chegado a um patamar em que o preço por litro de leite nos fizesse sentir completamente confortáveis, capaz de suportar as nossas despesas e encargos, e termos uma vida estável com mais rendimento e dignidade que todos nós precisámos e merecíamos e já a indústria anunciou descidas no preço de leite, mesmo sabendo que os custos dos fatores de produção, como as rações, a energia ou as taxas de juro tiveram subidas brutais e, começaram com esta tendência, antes da invasão da Ucrânia pela Rússia, e nunca foram devidamente compensados pelo adequado preço de leite. Igualmente, convém relembrar que as subidas em novembro do preço de leite no continente praticadas pelo Pingo Doce e pela Lactogal, não se repercutiram nos produtores de leite Açorianos.

Com as descidas anunciadas de 5 cêntimos em abril pela Prolacto e de 3 cêntimos em maio e em junho pela Bel, novamente, retomamos a estratégia da indústria de delapidar os rendimentos dos produtores de leite, já que estes anúncios podem significar a perda de 30 milhões de euros para a Lavoura.

Lamentavelmente, a postura das indústrias perante o mercado não se alterou e têm sempre uma atitude proativa nas descidas do leite e reativas quando existem condições, para a subida do preço do leite. O tempo passa e a indústria continua a ter uma atitude inqualificável e retrograda, e não consegue acompanhar a evolução das preferências dos consumidores e dos próprios mercados.

 - O que tem a dizer da estratégia da redução do leite e da reconversão do leite para a carne?

J. R. - São Miguel continua a produzir ainda menos leite do que o ano passado, estamos com um milhão de litros a menos comparativamente ao ano passado, um valor interessante para as pessoas perceberem que a retoma está a ser feita de forma gradual, pelo contrário as Indústrias pensavam que iria ser uma retoma rápida, quando propusemos ao governo regional a redução até 20%, assustaram-se, porém, o nosso objetivo, aquilo que pretendíamos com a redução foi atingido. Os números falam por si, se era isto que nós instituições ligadas ao setor pretendíamos? Não era, mas no final das contas fomos empurrados para esta situação, por isso ao invés de cairmos no abismo, tivemos de ter ferramentas próprias. É normal que as Indústrias não admitam que foi por esta questão que aumentaram o preço do leite, mas é certo que algo as fez mudar este paradigma. Falando agora sobre a reconversão do leite para a carne, foram 111 produtores aqui na Região com 5.488 direitos de vacas aleitantes. A ilha de São Miguel foi onde a reconversão teve um maior impacto, com 57 produtores e reconheço que temos que valorizar todos os produtores que tiveram a ousadia e coragem de deixar o leite e partir para a produção de carne, num processo difícil e um pouco às escuras, é preciso que se reconheça o mérito daqueles que foram para carne e que de certa forma beneficiaram também aqueles que ficam, por isso acredito que estamos no caminho certo, neste sentido já tivemos o nosso primeiro colóquio em São Miguel, sobre a carne em parceria com a CERCA, o Centro de Estratégia Regional para a Carne dos Açores, e pretendemos cada vez mais criar eventos e formações relacionados com o setor da carne nos Açores.

- Foi publicado em Jornal Oficial o mecanismo de natureza excecional para o reconhecimento de posse, uso e gestão efetiva de parcelas agrícolas, face à atualização do sistema de identificação parcelar que o IFAP está a realizar na região, esta medida já se encontra em funcionamento?

J. R. - Foi uma medida que nos deu muito trabalho, mas foi um trabalho de parceria entre o Governo dos Açores e Federação Agrícola dos Açores que culminou numa aceitação do IFAP, de um grupo de validação e reconhecimento, onde os produtores asseguram os terrenos da sua exploração sem comprovativo de posse da terra, para efeitos de candidatura aos apoios à perda de rendimento, assim como para candidaturas ao investimento, o que tranquiliza a lavoura. Temos feito de tudo para que este problema fique resolvido e que a agropecuária na região continue ativa e dinâmica na produção agroalimentar que proporciona às comunidades locais, esta situação está num bom andamento, os restantes terrenos que estão mais difíceis de comprovar por algum motivo, ficarão para o final.

O único entrave à aplicação desta medida é que o documento aprovado, em Conselho de Governo, ainda não está validado pelo grupo de reconhecimento, mas já lembrei várias vezes o Sr. Secretário da Agricultura para esta situação e penso que estará para muito breve a resolução final deste problema. 

- No setor da logística, atualmente considera que o modelo de transportes marítimos e aéreos a funcionar na Região e os apoios aos combustíveis estão bem assegurados?

J. R. - Nos dias de hoje, os aumentos nos preços dos transportes têm sido significativos provocando subidas de vários produtos. Os impactos dos transportes nas importações e nas exportações são substanciais e que depois se refletem nos preços dos transportes marítimos, nomeadamente, no nosso caso, em que por sermos região ultraperiférica, estamos longe dos mercados principais, apesar dos apoios que o Governo Regional nos concedeu e que se traduziram muito úteis, ainda surgem adversidades relacionadas com a questão da logística e meios de transporte nas ilhas, principalmente nas ilhas mais ocidentais, como é o caso das Ilhas das Flores e Corvo. No âmbito dos combustíveis, houve um aumento brutal dos mesmos, contudo acredito que estes preços têm de ser vistos, analisados e o próprio governo tem de fazer uma profunda análise dos mesmos.

Já houve uma tentativa no parlamento regional de criar legislação sobre novas condições para o acesso ao benéfico ao gasóleo agrícola proposto pela Federação Agrícola, mas foi não foi aprovada pelo parlamento.

No entanto, existe um compromisso com o Governo de nova proposta ser colocada para apreciação e discussão na Assembleia Legislativa Regional, mas que até agora ainda não aconteceu.

- Por fim, uma das reivindicações mais antigas dos agricultores, que tem sido várias vezes discutida, tem sido a questão do valor elevado de Segurança Social pago pelos agricultores, o dificulta o ingresso dos jovens na agricultura, o que é que é preciso mudar?

J. R. - Ou elimina-se o imposto da Segurança Social ou então terá de haver uma ajuda suplementar para os jovens agricultores acreditarem e terem confiança neste setor, não se pode estar incentivando e pedindo aos jovens agricultores que entrem para este mercado de trabalho, que é duro e com poucas receitas, e ainda por cima com uma brutalidade de impostos para pagar, na minha opinião a solução passa por se criar uma ajuda adicional aos jovens agricultores para a Segurança Social.